5 discos independentes de cantoras brasileiras - e um pouco de suas histórias
Cláudia Savaget "Impacto" (Studio Hara, 1974)
O disco de estreia da cantora Cláudia Savaget viu seu valor de mercado subir meteoricamente após outro lançamento do mesmo selo ser vendido por R$8 mil reais numa plataforma de colecionadores. E embora a inflação e elitização da música seja desprezível e inaceitável em 2021, a alta de preços beneficiou a artista, que tem tido sua discografia retomada pela geração mais jovem. "Impacto" é 1 de 3 discos independentes lançados por Savaget; segundo a artista, a tiragem do álbum foi pequena, o que explica a escassez do LP (alado ao fato de que muitas cópias foram para Ásia e Europa, regiões que consomem a música da artista assiduamente há décadas).
A estreia da artista é marcada pela melancolia e pelo tom noturno, características que são conferidas pelo conjunto de timbre, arranjos e composições. Recheado de regravações, como "Recado ao Poeta" (Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro), "Três da Madrugada" (Carlos Pinto e Torquato Neto) e "Cala a Boca, Bárbara" (Chico Buarque e Ruy Guerra), mas também trazendo o brilho de composições inéditas, como "Amor Em Desmazelo", "Cabides" e "Madrugada Celeste" (as três de autoria de Luiz Otávio Braga, violonista e hoje marido de Savaget), o LP "Impacto" é um raro registro do lado B da bossa-nova brasileira; a tristeza cinzenta que consolidou Nara Leão com o disco "Dez Anos Depois" é a mesma que não permitiu que Cláudia Savaget decolasse voo com seu primeiro disco. A artista foi agraciada com o sucesso comercial um pouco mais tarde, após tornar-se pupila de Cartola e viajar o Brasil se apresentando com ele através do Projeto Pixinguinha.
O que é importante lembrar sobre Cláudia Savaget é de que ela nunca gravou algo mediano - sua voz especial e a interpretação avantajada que esta possibilita jamais permitiriam tamanha gafe. Savaget é, verdadeiramente, um patrimônio cultural vivo para a música brasileira; uma artista acima da média, e que vem fortalecida por uma época em que a música brasileira não aceitava nada que não fosse excelente.
Marilene "Pequenas Flores" (1985, independente)
Cristã desde sua juventude, Marilene Vieira encontraria grande sucesso comercial a partir dos anos 90 como cantora de música religiosa para crianças; algumas fontes referem-se à ela como "a Xuxa evangélica". Mas algum tempo antes, mais especificamente em 1985, Vieira juntou-se a um time de peso para criar "Pequenas Flores", álbum independente de jazz altamente inspirado pelo gênero musical japonês city pop (apesar de que a artista afirme nunca ter ouvido falar sobre a referência). Na época, a Creche Reencontro, dirigida pela Igreja Batista de Niterói (da qual Marilene fazia parte), visava a compra de um terreno para dar continuidade ao seu trabalho educacional; eles então contrataram a artista para criar um disco com fins beneficentes.
"Pequenas Flores" é uma pérola (muito) escondida do jazz no Brasil. Marcado especialmente pela voz doce e infantilizada de Marilene, o álbum lida com temas cristãos (apesar de não ter sido feito para o público evangélico) enquanto amparado pela produção de altíssimo nível. Além do jazz, brinca com blues, música pop, funk, soul e MPB alternativa.
Marilene gravou inicialmente uma versão voz e piano do álbum em fita cassete, visando angariar o interesse de músicos da MPB para participarem do projeto; uma moça da igreja e sem contato com a música popular, Vieira não tinha referências. Foi então quando Nico Assumpção (1954-2001), considerado um dos maiores baixistas do Brasil, ouviu a demo e se apaixonou pela voz da artista, a chamando de "lírica" e "sonora", e se ofereceu para produzir "Pequenas Flores".
Assumpção, ciente do baixíssimo orçamento do projeto, então procurou um alugador de instrumentos musicais na Barra da Tijuca; o convenceu a emprestar os instrumentos gratuitamente ao soltar: "você não está emprestando para mim, está emprestando para Deus". Segundo Marilene, a equipe de músicos responsável pelo disco (que inclui Márcio Montarroyos, Raul Mascarenhas, Luizinho Avellar e Marinho Boffa) sentiu a presença de Deus durante toda a gravação do projeto, conforme as portas foram se abrindo naturalmente e possibilitando a concretização do trabalho.
A versão final de "Pequenas Flores" foi gravado nos estúdios Polygram no Rio de Janeiro - referência em qualidade musical e sonora nos anos 80. Um carro foi vendido para possibilitar o pagamento do estúdio, fato que a própria cantora só ficou sabendo anos depois. Foram prensadas apenas 2 mil cópias de vinil e o disco nunca foi relançado, nem mesmo digitalmente, fazendo com que o álbum se tornasse uma verdadeira raridade.
Rosa Reis "Rosa Reis" (1991, Laborarte)
Lucinha Madana Mohana / Lucinha Morena "Feiticeira de Jaya" (1991, RBS Discos)
"Feiticeira de Jaya" é uma obra conjunta da artista e escritora potiguar Lucinha Madana Mohana, do instrumentista Tomás Improta e de Barrosinho, trompetista conhecido por seu trabalho na Banda Black Rio. Por muito tempo esquecido e injustamente mantido num obscuro limbo musical, o álbum tem sido redescoberto por pesquisadores musicais e colecionadores de discos, tanto no Brasil como no Japão.
Existe uma densa névoa de neblina que envolve a atmosfera de "Feiticeira de Jaya"; o disco é difícil de ser resenhado ou então decifrado, particularmente devido à riqueza de detalhes referentes ao sincretismo religioso presente na obra. São milhares as referências à bruxaria e feitiçaria (como as faixas "Oxum Ro Ro", homenagem bruxal feita para Angela Ro Ro, e "Hino das Bruxas"), ao hinduísmo (a música de abertura é "Jaya Radha Madhava", poema hindu milenar transformado em hino jazzístico) e também às religiões de matriz-africana, como a umbanda e o candomblé (a canção "Capitão do Mato" trata-se de uma maldição contra maridos infiéis, endossada por Xangô).
De acordo com a contra-capa de "Enigma Feiticeiro", livro de poesias ocultas lançado por Madana Mohana anos antes, o álbum foi gravado em 1988; todas as composições do disco foram retiradas deste livro, portanto posteriormente musicalizadas pela artista. O LP, entretanto, foi prensado apenas em 1991, muito provavelmente devido à disputas pessoais entre Madana Mohana e Barrosinho (as fitas originais do álbum, inclusive, ficaram em posse de Barrosinho até 2009 quando o artista faleceu; seu então empresário as devolveu para Madana Mohana recentemente.) "Feiticeira de Jaya" foi lançado com duas capas diferentes e o vinil nunca foi às lojas - dois fatos que não se explicam.
A ficha técnica do disco é invejável mas, em especial, reforça o paradoxo referente à obscuridade do trabalho: aqui estão presentes Antônio Adolfo, Clara Sandroni e Terezinha de Jesus, além de Maria Baracho (mãe de Madana Mohana, que canta em "Govinda") e do próprio Barrosinho, responsável pelos arranjos. Mas antes tarde do que mais tarde: um álbum de world music - décadas antes do gênero se popularizar no Brasil -, passando pelo jazz, música de terreiro, cantiga de bruxa, eletrônico, blues e étnico, "Feiticeira de Jaya" finalmente vê a luz do dia: o reconhecimento, ainda nichado mas que é real e que sem sombra de dúvidas transformará a obra-prima de Madana Mohana numa referência internacional para a música do Brasil.
Helena Penna "Marias" (1995, independente)
Dona de voz aveludada e, através dela, decidida a trazer reconhecimento para sua terra natal de Minas Gerais, a sambista, historiadora, atriz e cabeleireira Helena Penna estreou no mercado fonográfico nos anos 90 com o independente "Marias". Apesar do trabalho ter tido circulação limitada (atualmente a versão em vinil chega a custar R$1200 no mercado de discos), "Marias" rendeu à Penna o Prêmio Sharp da MPB (hoje conhecido como Prêmio da Música Brasileira) na categoria Revelação.
"Marias" valorizou o piano em primeiro plano, sendo este o instrumento parceiro da artista e que, em conjunto, conferiram requintes de bossa-nova ao álbum. Majoritariamente um disco de samba e da mais noventista das MPBs, "Marias" foi corajoso ao explorar um repertório quase 100% inédito (salvo por "Maria, Maria", de Milton Nascimento, e uma versão em inglês de "Triste", de Tom Jobim). A exemplo: "Terra Brasilis" (Angelo Pinho e Jorge F. dos Santos), uma das únicas canções do álbum disponibilizadas na internet, traz uma ode ao Brasil milenar, enquanto "Trono de Iemanjá" (Jair Silva) resgata a ancestralidade afro-brasileira de Penna.
A última gravação solo da artista data de 1997 e seu último show registrado é de 1998, quando abriu para Elba Ramalho. Debilitada pela diabetes e com dificuldade para arcar com os custos do tratamento, o corpo da artista sofreu com as complicações da doença. Ela nos deixou em 2012, mas não antes de ser homenageada com o show beneficente "Todos Por Helena Penna", que arrecadou R$13 mil em venda de ingressos e R$5 mil em venda de CDs - valores que foram revertidos com totalidade para o tratamento da artista. Helena partiu deste plano e foi passear pelo universo, mas com a certeza de que é amada pelo público e de que sua obra jamais será prejudicada pela maldade do tempo.
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